Em que pese o termo “confissão” estar associado, no imaginário popular, a algo que depois de realizado não comporta modificações, ainda mais frente ao caráter religioso em que o termo é sempre usado, tornando-o praticamente sagrado, na seara jurídica, quando se analisa o mundo do agronegócio não é bem assim que acontece.
De forma inicial é importante informar ao leitor amigo que uma escritura pública de confissão de dívida é um tipo de declaração unilateral de vontade, realizada em um cartório, no qual o devedor reconhece estar em dívida com um credor, discriminando o valor específico e a forma de pagamento (pecúnia/dinheiro ou equivalente/produto/itens).
Insta ressaltar que a confissão de dívida não é algo exclusivamente rural, pode ser utilizada em vários momentos nas relações jurídicas negociais, mas recebe tratamento especial quando nesse âmbito.
A vantagem do documento público é a utilização do sistema de registro – escritura pública de confissão de dívida – que garante mais segurança às partes envolvidas face a oponibilidade erga omnes, contra todos, envolta em um documento público. Mesmo assim, não se trata de um documento imutável, uma vez que está atrelado à vontade das partes envolvidas e no próprio crédito rural, portanto, sujeita-se a condições específicas da legislação correlata.
A legislação que rege o crédito rural é decorrente da Lei Federal n. 4.595/1.964 que dispõe sobre a Política e as Instituições Monetárias, Bancárias e Creditícias, Cria o Conselho Monetário Nacional e dá outras providências, norma jurídica que traz em seu Art. 4º quais seriam as competências do Conselho Monetário Nacional, a quem caberia propor ao Poder Executivo a criação de um projeto de lei que institucionalizasse o crédito rural, conforme exposto no Art. 54.
O citado projeto de lei tornou-se a norma Federal n. 4.829/65, que institucionalizou o crédito rural. Na mencionada norma jurídica é expresso (Art. 2º) que o crédito rural nada mais é que o suprimento de recursos financeiros por entidades públicas e estabelecimentos de crédito particulares a produtores rurais ou a suas cooperativas para aplicação exclusiva em atividades que se enquadrem nos objetivos indicados na legislação em vigor.
Ademais, é demonstrado na norma jurídica que entre os objetivos do crédito rural tem-se: estimular o incremento ordenado dos investimentos rurais, inclusive para armazenamento, beneficiamento e industrialização dos produtos agropecuários, quando efetuado por cooperativas ou pelo produtor na sua propriedade rural; favorecer o custeio oportuno e adequado da produção e a comercialização de produtos agropecuários; possibilitar o fortalecimento econômico dos produtores rurais, notadamente pequenos e médios e incentivar a introdução de métodos racionais de produção, visando ao aumento da produtividade e à melhoria do padrão de vida das populações rurais, e à adequada defesa do solo, conforme entabula o Art. 3º (Lei Federal n. 4.829/65)
Importante destacar que a legislação foi construída fundamentada especialmente no interesse do coletivo, até mesmo porque esse sobrepuja ao interesse particular, demonstrando claramente que a produção e o estímulo aos investimentos do agro são vantajosos para toda a sociedade, algo indiscutível bastando verificar, em exemplo bem pequeno, a quantidade de emprego, diretos e indiretos, que / atividade gera.
Ainda em um perscruto histórico normativo do crédito rural, verificamos que o Decreto Lei 167/67, que dispõe sobre títulos de crédito rural e dá outras providências, estabeleceu regras mais detalhadas para a concessão de citado crédito, o que foi seguido de normativos específicos emanados do Conselho Monetário Nacional –CMN. Por fim, o Banco Central do Brasil elaborou condições para aplicação pelas instituições integrantes do Sistema Nacional do Crédito Rural, por meio de Circulares e Cartas/Circulares que se acham compiladas no Manual de Crédito Rural do Banco Central do Brasil – MCR, disponível em <https://www3.bcb.gov.br/mcr>.
Analisando o MCR, especificamente na parte de Normas Seção 2 – MCR Normas, item 1, Disposições Gerais, observa-se que a concessão de crédito rural subordina-se à observância das recomendações e restrições do zoneamento agroecológico e do Zoneamento Ecológico-Econômico (ZEE), conforme Resolução CMN n. 4.883.
“A escritura pública de confissão de dívida decorrente de financiamento rural não é intangível, tampouco indiscutível, razão pela qual pode e deve ser reavaliada sempre que o produtor rural verificar que está diante de uma obrigação leonina, desarrazoada e desproporcional”
Destaca-se que as condições básicas para uso do Crédito Rural é o uso exclusivo no agro, seja no custeio da produção, no investimento para se ter melhoria produtiva, na comercialização do produto agrícola e na industrialização do mesmo.
Convém destacar, pela aplicação específica na produção, que existe o ônus do produtor rural de reter os comprovantes de aplicação dos recursos, uma vez que se deve comprovar que o crédito foi utilizado para os fins pactuados, exclusivamente nas atividades agrossilvipastoris.
Nesse sentido, o manual ainda prevê, por exemplo, o direito de prorrogação do prazo para operações desse gênero, no capítulo 2, seção 6: “[…]é devida a prorrogação da dívida, aos mesmos encargos financeiros antes pactuados no instrumento de crédito, desde que se comprove incapacidade de pagamento do mutuário, em consequência de: a) dificuldade de comercialização dos produtos; b) frustração de safras, por fatores adversos; c) eventuais ocorrências prejudiciais ao desenvolvimento das explorações.
Também não se pode olvidar a existência do direito à indenização garantido pelo Programa de Garantia da Atividade Agropecuária – ProAgro, na hipótese de perdas causadas por intempéries na produção financiada. A indenização se dá pela contratação do seguro no momento da contratação do empréstimo/financiamento.
Em quaisquer desses cenários é indispensável que o produtor rural esteja com os devidos comprovantes em mãos, bem como é prudente estar assessorado por profissionais que assegurem o cumprimento dos direitos respectivos.
Diante disso, é fácil de se perceber que a regulamentação e enquadramento de operações a serem custeadas por meio do crédito rural são baseadas na utilização de recursos exclusivamente para o agro e tem fundamentos muito específicos.
Assim sendo, ainda mais para se dar a devida alocução ao título do presente artigo, embora o crédito rural seja envolto de normas especificas a serem seguidas, com regramentos muito bem delineados, em caso de dívidas confessas em escritura pública, caso o valor confessado no documento público seja resultado da aplicação de taxas de juros remuneratórios e/ou juros moratórios em dissintonia com o previsto pelas Leis 4.829/65, 8.171/91 e o Dl 167/67, tal fato contamina o valor da dívida, nascendo ao produtor rural o direito de revisão de tal débito.
O direito de revisão do débito confessado está amparado pela Súmula 286 do Superior Tribunal de Justiça – STJ, na qual expõe que “A renegociação de contrato bancário ou a confissão da dívida não impede a possibilidade de discussão sobre eventuais ilegalidades dos contratos anteriores.”.
Diante disso, vale sublinhar que a escritura pública de confissão de dívida decorrente de financiamento rural não é intangível, tampouco indiscutível, razão pela qual pode e deve ser reavaliada sempre que o produtor rural verificar que está diante de uma obrigação leonina, desarrazoada e desproporcional.
Ana Lacerda é advogada do escritório Advocacia Lacerda e escreve exclusivamente nesta coluna às quartas-feiras. E-mail: analacerda@advocacialacerda.com. Site: www.advocacialacerda.com
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