Na semana anterior falamos aqui de uma decisão bastante problemática do Ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, a respeito da, teórica, necessidade da instalação imediata de comissões de conflitos fundiários pelos Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais.
A ideia é que sejam feitas inspeções judiciais no local do litígio, audiências de mediação previamente à execução das desocupações coletivas de pessoas vulneráveis, mesmo quando se tratar daqueles casos cujos mandados já tenham sido expedidos, e a observância do devido processo legal tenha ocorrido, como explicamos na semana passada.
Mato Grosso figura nesse cenário com a propositura legislativa 30/2019, que tramita na Assembleia Legislativa do Estado, cuja ementa propõe acrescentar dispositivo na Constituição Estadual, criando o Comitê Estadual de Acompanhamento de Conflitos Fundiários de Mato Grosso.
“Sob esse viés, vale destacar que em Mato Grosso, estado com muitas propriedades rurais, os casos de crime e violência decorrentes de conflitos fundiários devem ser manejados com a máxima seriedade, transparência e legalidade”
Desde que foi lido em sessão legislativa, em 04/12/2019, o projeto já recebeu três emendas, a serem explicadas a seguir. Na forma original, o Projeto define que o mencionado Comitê seria encarregado de coordenar e aglutinar as várias instituições envolvidas na condução e disciplinamento do cumprimento de decisões judiciais de mandados de reintegração de posse em áreas rurais e urbanas, e dar apoio às instituições responsáveis pela resolutividade dos conflitos fundiários.
As três emendas propostas alteraram o texto original no sentido de acrescentar a figura dos advogados na composição de membros do Comitê; de que a votação sobre os casos não precisaria mais ser unânime, tendo em vista o caráter antidemocrático desse tipo de condição que daria o poder de veto total a um voto divergente do todo, por exemplo; e depois, acrescenta a figura da Federação da Agricultura e Pecuária do Estado de Mato Grosso – FAMATO ao corpo de membros.
Nesse sentido, ocorre um estranhamento já de início, pela forma vaga como o texto indica as atribuições do então Comitê, em que consiste aglutinar instituições, qual seria o propósito disso? A propositura soa problemática, uma vez que pretende criar uma organização institucionalizada para fazer funções que já são de competência de outras.
Segue o projeto narrando que ao Comitê seria incumbido o estudo de situação da área a ser reintegrada, devendo esse, emitir relatório técnico detalhado ao Poder Judiciário a fim de dar conhecimento da forma de cumprimento da ordem judicial. Ora, todo esse amontoado de informações técnicas e burocráticas já existe detalhado e amplamente comprovado nos autos dos processos oriundos das decisões judiciais. Trata-se de atravessamento despropositado!
Sob esse viés, vale destacar que em Mato Grosso, estado com muitas propriedades rurais, os casos de crime e violência decorrentes de conflitos fundiários devem ser manejados com a máxima seriedade, transparência e legalidade. Essa tarefa não pode passar de mão em mão causando mais insegurança jurídica em questões que por si só já são tão delicadas.
O modo como o Ministro decidiu e as ideias protocoladas no projeto em comento funcionam muito proximamente do que seria um tribunal recursal fora do lugar, pronto para desbancar um direito constitucional fundamental, que se encontra cristalizado no art. 5º, inciso XXII, da Constituição Federal de 1988, que reza, in verbis, ”é garantido o direito de propriedade”, garantindo a posse, uso e gozo do bem preservados. De igual maneira, há legislação para a proteção do direito à propriedade nos códigos infraconstitucionais.
É importante que a sociedade brasileira e que os representantes legítimos dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, bem como o Ministério Público Estadual e Federal, observem as obrigações e direitos constitucionais do homem do campo que produz alimentos para evitar a fome e a miséria no Brasil.
O direito de adquirir uma propriedade rural ou urbana é livre no Brasil e depende da capacidade financeira de cada um. Importante levar em consideração que quando uma autoridade chama um fazendeiro de latifundiário, esse fato deve ser considerado como insulto, calúnia e incitação à discriminação do homem do campo que produz alimentos para ajudar o Estado a combater a fome no país.
Vale lembrar que o combate à fome e à miséria no país, bem como a reforma agrária são deveres do Estado e não do homem do campo. Reforma agrária, leia-se: terras públicas ou desapropriadas pelo governo, mediante o pagamento justo do valor da terra ao proprietário. Nunca e em tempo algum, o programa de reforma agrária permite a invasão de terras privadas; invasão de terras por grupos ou bandos de pessoas organizadas e de maneira premeditada é crime, e não pode ser considerado como conflito coletivo de terras, conflito coletivo de terras é outra coisa.
Deixar de cumprir uma ordem judicial dessa natureza é relativizar o crime ou dar guarida ao crime. O programa de reforma agrária existe justamente para evitar a guerra no campo provocada por líderes que ganham dinheiro e usam trabalhadores rurais como inocentes úteis. Inclusive, a invasão do imóvel é causa de suspensão do processo expropriatório para fins de reforma agrária. Não é permitido ao Estado que não cumpre com o seu papel, violar direitos de particulares, permitindo e garantindo as invasões de terras. Na democracia vale a lei, e não a vontade do Rei!
Não é de hoje que se tem o entendimento da essência da propriedade: a Declaração dos Direitos dos Homens de 1867, o art. 17 diz que a propriedade é um direito inviolável e sagrado. Tem-se ainda como princípio fundamental da propriedade a oponibilidade erga omnes: o direito de propriedade é oposto contra qualquer pessoa da sociedade humana que o viole – caráter absoluto.
É preciso proteger cada vez mais o homem do campo, que dia após dia se vê ameaçado e acuado, perdendo direitos e refém de uma insegurança jurídica descomunal. É importante observar o destino do Brasil com a perda de autoridade das decisões judiciais…. É permitindo injustiça com os demais, que um dia os efeitos dessa injustiça baterão a nossa porta e não haverá quem nos defenda.
Ana Lacerda é advogada do escritório Advocacia Lacerda e escreve exclusivamente nesta coluna às quartas-feiras. E-mail: analacerda@advocacialacerda.com. Site: www.advocacialacerda.com
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