A responsabilidade penal das pessoas jurídicas, especialmente no contexto dos crimes ambientais, suscita um intenso debate sobre a compatibilidade dessa responsabilização com os princípios tradicionais do direito penal. A discussão também abrange a forma como essa responsabilidade pode ser aplicada de maneira efetiva, sem comprometer os direitos fundamentais que permeiam o ordenamento jurídico brasileiro.
Por se tratar de um assunto extenso e que merece uma discussão mais detalhada, optamos por apresentá-lo em duas partes: a primeira nesta semana e a segunda na semana seguinte, na qual abordaremos os desdobramentos quanto à eficácia, prescrição, delação premiada e outros itens mais, a fim de dar devida atenção que o tema merece.
O ponto de partida para essa discussão está na própria Constituição Federal, que, em seu artigo 173, parágrafo 5º, e no artigo 225, parágrafo 3º, que fundamentam a responsabilização das pessoas jurídicas por crimes econômicos, financeiros e ambientais. Esses dispositivos estabelecem uma abertura constitucional para a responsabilização penal das empresas, rompendo com o princípio clássico de que apenas pessoas físicas poderiam ser sujeitas ativos de infrações penais.
“A questão central que se apresenta é como operacionalizar de forma justa essa responsabilização, uma vez que a Constituição não a detalha completamente, deixando essa tarefa para a legislação infraconstitucional”
A questão central que se apresenta é como operacionalizar de forma justa essa responsabilização, uma vez que a Constituição não a detalha completamente, deixando essa tarefa para a legislação infraconstitucional. No caso dos crimes ambientais, a Lei n.º 9.605/1998 cumpre esse papel ao prever sanções penais específicas para as pessoas jurídicas. Essa lei consagra, em seu artigo 3º, a possibilidade de responsabilização penal da pessoa jurídica nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da entidade.
No tocante às penas das pessoas jurídicas, essas estão estabelecidas no artigo 21 da Lei nº 9.605/98, podendo ser aplicadas isoladamente, cumulativamente e alternativamente as penas de multa, restrição de direitos e prestação de serviços à comunidade.
Entre as penas restritivas de direitos temos a possibilidade de suspensão parcial ou total de atividades, quando essas não estiverem obedecendo as disposições legais relativas a proteção do meio ambiente; interdição temporária de estabelecimento, obra ou atividade, quando o estabelecimento, obra ou atividade estiver funcionando sem a devida autorização, ou em desacordo com a concedida; e/ou proibição de contratar com o Poder Público, bem como dele obter subsídios, subvenções ou doações, cujo prazo não poderá exceder a 10 anos.
Contudo, o desenvolvimento jurisprudencial demonstrou a complexidade de se aplicar essa responsabilidade. Durante anos, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) adotou a teoria da dupla imputação, exigindo a concomitante imputação de responsabilidade à pessoa física que, em nome da pessoa jurídica, praticou o ato ilícito. Esse entendimento baseava-se na ideia de que somente uma pessoa física poderia apresentar o elemento subjetivo do crime – dolo ou culpa –, o que tornava impossível, segundo essa linha de pensamento, a responsabilização penal isolada da pessoa jurídica.
Todavia, esse entendimento foi superado após o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) do RE 548.181, que abriu caminho para a responsabilização penal das pessoas jurídicas independentemente da condenação das pessoas físicas envolvidas. Esse ato jurisprudencial foi acolhido pelo STJ, como se vê no RMS 39.173, relatado pelo ministro Reynaldo Soares da Fonseca, onde se afirmou que a responsabilidade penal da pessoa jurídica pode ser aplicada de forma autônoma em relação à responsabilidade dos indivíduos que a representam.
Assim, a investigação da responsabilidade penal das pessoas jurídicas no domínio dos crimes ambientais sublinha a intricada tarefa de conciliar os princípios tradicionais do direito penal com as demandas contemporâneas de proteção ambiental. A evolução jurisprudencial, ao consagrar a possibilidade de responsabilização autônoma das pessoas jurídicas, representa um significativo avanço na tutela ambiental, mas simultaneamente suscita desafios e incertezas, especialmente para o produtor rural, que frequentemente se vê imerso em uma complexa rede normativa de interpretação árdua.
Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2024/05052024-A-responsabilidade-penal-das-pessoas-juridicas-segundo-o-STJ.aspx Acesso em agosto de 2024.
Nesse cenário, torna-se imperativo aprofundar a análise acerca da aplicação concreta dessas normas e dos reflexos jurídicos para o setor rural, tema que será objeto de nova abordagem na semana subsequente para uma melhor compreensão do tema.