Dívidas do produtor rural e recuperação judicial

Com o advento do Código Civil, Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, o ordenamento jurídico brasileiro passou a admitir a atuação de produtores rurais como pessoa física ou jurídica. No caso de atuação como pessoa jurídica, em razão das exigências da Lei de Recuperação Judicial, a Lei nº 11.101/2005, passou a ser necessário respeitar a carência legal de no mínimo dois anos de atividade para que as empresas cadastradas tivessem acesso ao processo de reestruturação judicial.

“O ordenamento jurídico brasileiro passou a admitir a atuação de produtores rurais como pessoa física ou jurídica”

De acordo com essa alteração, um caso emblemático em nosso Estado acabou ficando conhecido no meio jurídico devido ao grande valor financeiro das dívidas envolvidas, trata-se do pedido de recuperação judicial da empresa JPupin Agropecuária, que no ano de 2015 foi negado por causa da sua recente inscrição na junta comercial, tendo o pedido sido acatado apenas no ano de 2017, após a empresa alcançar o período de dois anos de atividade, conforme exigido em lei.

Posteriormente, já em fase recursal, quando do julgamento do Recurso Especial apresentado por referida empresa, que tinha como objeto requerer que todas as dívidas do produtor fossem incluídas no processo de recuperação, tanto as anteriores, quanto as posteriores à inscrição da empresa rural como pessoa jurídica, acabou por originar a acalorada divergência da matéria no Superior Tribunal de Justiça, tendo em vista que diversos bancos credores, bem como a Federação Brasileira de Bancos (FEBRABAN), sustentaram que os produtores/empresários rurais Requerentes não se enquadravam na recuperação judicial, sob o argumento de que muitos dos débitos indicados seriam anteriores à inscrição na Junta Comercial, o que afrontaria o texto legal.

Ao contrário da argumentação manejada pelas instituições financeiras, durante o julgamento proferido pela Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, no emblemático REsp nº 1.800.032-MT, que teve seu julgamento finalizado em 05 de novembro deste ano, foi adotado como entendimento majoritário pela maioria dos Ministros, que a natureza declaratória da inscrição do produtor (empresário) rural na Junta Comercial, possibilita que os créditos havidos antes da inscrição também podem ser inseridos à recuperação judicial, todavia, é importante que entendamos o contexto da construção desse raciocínio.

O primeiro voto proferido pelo Ministro Marco Buzzi, que negava provimento ao Recurso do empresário rural, entendia que a natureza da inscrição na Junta Comercial possuía caráter constitutivo, apenas com efeito “ex nunc”, ou seja, a partir de sua efetivação em diante, não atingindo acontecimentos pretéritos, todavia, o voto apresentado posteriormente pelo Ministro Raul Araújo, divergiu do entendimento do Relator, tendo prevalecido a sua tese de que não apenas as dívidas contraídas após a data da inscrição na Junta Comercial estão sujeitas aos efeitos da recuperação judicial, mas sim todas as dívidas do produtor rural.

Nas palavras do Ministro Raul Araújo: “A legislação nacional, levando em conta a importância, a relevância desse setor econômico para o país, deu um tratamento diferenciado para o empreendedor rural que pode ser um produtor rural regido pelo Código Civil ou pode ser um empresário rural regido pelo regime empresarial, mas ambos os casos está em situação regular.”

Portanto, conforme o entendimento majoritário, a inscrição do empresário rural como pessoa jurídica na Junta Comercial serve apenas e tão somente como condição para a aplicação de melhores condições jurídicas, sejam elas civis ou empresariais, não alterando em nada a situação de fato.

Assim sendo, graças à tese vencedora, o Superior Tribunal de Justiça proferiu acórdão favorável aos produtores rurais, tratando-se de uma vitória relevante e icônica para o setor, configurando uma questão de suma importância para o fortalecimento e garantia da atividade agropecuária.

A possibilidade de inserção dos débitos contraídos pelo produtor rural quando pessoa física, anteriores à formação da personalidade jurídica, em seu pedido de recuperação judicial posteriormente formulado, traz maior garantia ao setor, possibilitando para mais de 5 milhões de produtores (conforme dados do IBGE de 2017), a capacidade de atuar com a certeza de que todos os débitos, tanto os anteriores, quanto os posteriores à inscrição na junta comercial, poderão ser alvo de reestruturação judicial.

“A possibilidade de inserção dos débitos contraídos pelo produtor rural quando pessoa física, anteriores à formação da personalidade jurídica, em seu pedido de recuperação judicial posteriormente formulado, traz maior garantia ao setor”

O Ministro Luís Felipe Salomão ressaltou em seu voto os princípios da recuperação judicial e discorreu ainda acerca da importância da atividade exercida pelo produtor rural, categorizando como uma ameaça terrorista as condutas empregadas pelas instituições financeiras que financiam o agronegócio, que em tom de ameaça, além da argumentação comentada em linhas pretéritas, vinham afirmando, ainda, que quaisquer decisões favoráveis aos produtores também poderiam diminuir a oferta de crédito e elevar as taxas de juros das operações financeiras.

Dessa forma, resta clarividente que a decisão colegiada proferida pela quarta turma do STJ caracteriza uma relevante conquista do setor agropecuário, que a cada dia tem sua importância econômica para a economia do país reconhecida, podendo continuar contribuindo para a construção de uma economia nacional forte, com cada vez menos riscos para o exercício de suas atividades, agora de uma forma mais justa e segura para todas as partes envolvidas.