
O Direito das Sucessões, inserido no cerne do Direito Civil, é o ramo responsável pela regulação da transmissão de bens, direitos e obrigações de uma pessoa após sua morte. Fundamentado em princípios constitucionais, como o direito de herança previsto no artigo 5º, inciso XXX, da Constituição Federal de 1988, e disciplinado pelos artigos 1.784 a 2.027 do Código Civil de 2002, estabelece os procedimentos para a partilha patrimonial entre os herdeiros. Contudo, a dinâmica contemporânea, marcada pelo avanço tecnológico e pela modernidade das ações digitais, tem imposto ao Direito Sucessório novos e complexos desafios, para os quais as normas vigentes ainda não oferecem respostas garantidas.
A herança digital trata de bens intangíveis como contas de e-mail, mídias sociais, arquivos armazenados em nuvem e criptomoedas, e surge como um reflexo da crescente digitalização da vida cotidiana. Esses bens, apesar de integrarem o patrimônio do falecido, muitas vezes não encontram amparo específico nas disposições legais em vigor, que se pautam predominantemente na materialidade dos bens e nas concepções tradicionais de patrimônio. Assim, o regramento atual, estático por natureza, demonstra-se insuficiente para tratar as questões suscitadas pela sucessão digital, gerando lacunas normativas e conflitos interpretativos.
“O testamento digital permite que o autor da herança exerça autonomia sobre seu patrimônio imaterial, prevenindo disputas judiciais e garantindo que os bens sejam transmitidos de acordo com seus desejos.”
Nesse cenário, algumas correntes doutrinárias têm buscado soluções temporárias por meio da aplicação da Lei de Direitos Autorais (Lei nº 9.610/1998), especialmente para os casos em que os bens digitais possuem caráter criativo ou intelectual. Essa abordagem, entretanto, não contempla a complexidade do tema, que envolve direitos patrimoniais, extrapatrimoniais e àqueles ligados à personalidade, podendo levar à perda de bens digitais ou à exploração não autorizada do patrimônio digital post mortem pelas plataformas, evidenciando a urgência de uma normatização adequada.
Diante disso, o Poder Judiciário já se vê obrigado a decidir questões relacionadas à forma casuística digital, o que, embora necessário, gera insegurança jurídica e interpretações inconsistentes. A realidade brasileira já registra casos emblemáticos que abordam a transmissibilidade de bens digitais, registro de direitos dos herdeiros de acesso a contas e arquivos, ou priorizando os direitos da personalidade e a proteção da privacidade do falecido. A oscilação jurisprudencial demonstra a necessidade da construção de um marco regulatório que concilie os direitos fundamentais e os interesses patrimoniais envolvidos.
Ao tratar da herança digital, torna-se imperioso considerar a dualidade desses bens, que podem possuir valor econômico ou afetivo. Criptomoedas, por exemplo, são passíveis de partilha nos moldes tradicionais, enquanto arquivos pessoais, mensagens e fotografias exigem maior cuidado, por envolverem questões ligadas à intimidade e à memória do falecido.
Além disso, a relevância econômica dos ativos digitais não pode ser ignorada. Conteúdos produzidos por influenciadores digitais, por exemplo, muitas vezes específicos, são verdadeiros legados patrimoniais, que devem ser reconhecidos como parte integrante do acervo hereditário. Nesse contexto, é imprescindível aos herdeiros o direito de usufruir desses bens, desde que em conformidade com a vontade do falecido e observados os limites pela razoabilidade e pela proteção à memória de quem se foi.
Diversos projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional buscam tratar da herança digital. No Senado Federal, o Projeto de Lei nº 6.468/2019, de autoria do senador Jorginho Mello (PL/SC), propõe a inclusão de dispositivos no Código Civil para garantir a transmissão dos bens e contas digitais aos herdeiros, enquanto o Projeto de Lei nº 365/2022, apresentado pelo senador Confúcio Moura (MDB/RO), aborda a sucessão de conteúdos digitais de caráter patrimonial e existencial, tais como fotografias, vídeos e documentos pessoais. Na Câmara dos Deputados, o PL nº 3.050/2020, de iniciativa do deputado Gilberto Abramo (REPUBLIC/MG), sugere uma abordagem semelhante, considerando a transmissão de arquivos e contas digitais como parte integrante do espólio.
A elaboração de testamentos digitais ou o planejamento sucessório, que inclui disposições específicas sobre bens digitais, apresenta-se como ferramenta eficaz para mitigar conflitos e garantir a observância da vontade do falecido. O testamento digital permite que o autor da herança exerça autonomia sobre seu patrimônio imaterial, prevenindo disputas judiciais e garantindo que os bens sejam transmitidos de acordo com seus desejos.
Contudo, na ausência de um testamento ou planejamento sucessório adequado, a solução jurídica para os bens digitais deve ser pautada pela ponderação de princípios. A análise dos casos concretos exige que se equilibre o direito dos herdeiros à transmissão patrimonial com a proteção dos direitos da personalidade do falecido.
Por fim, mesmo que seja um tema que está em discussões iniciais, a herança digital representa um campo jurídico em evolução, cuja orientação é inadiável, diante do impacto crescente da tecnologia na vida das pessoas. O avanço legislativo nessa seara deve ser orientado pelos princípios constitucionais e pela experiência comparada, garantindo segurança jurídica e a efetivação dos direitos fundamentais. Até lá, é necessário acompanhar com atenção essas decisões e normativas.