Incompatível

Ana Lacerda é Advogada atuante nas áreas de Direito Agrário e Ambiental na Advocacia Lacerda. Membro da comissão de Direito Agrário e da comissão de Direito Ambiental da OAB/MT

A beleza cênica pantaneira encanta a todos que têm a oportunidade de vislumbrá-la. O vaivém suave e ritmado das águas é quase de uma harmonia musical. Há na mata um burburinho de macacos, pássaros, répteis, roedores, bois e cavalos pantaneiros, que a luz do entardecer doura a tudo que toca… No canto do rio, boia uma latinha de bebida “esquecida” por um turista que pagou, não se sabe ao certo para quem, bem caro para viver essa experiência.

A cena supra descrita é ficcional (será mesmo?), mas poderia ser facilmente verificada em uma visita rápida ao Pantanal. A maior planície alagável do planeta é um mundo de água, possui uma área de 138.183 km², abrangendo parte do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, estendendo-se ainda por mais dois países o Paraguai e a Bolívia. Figura como Patrimônio Natural da Humanidade e Reserva da Biosfera.

 

É preciso e justo que as riquezas geradas pelo pantanal sejam em benefício de quem vive e sustenta o bioma. 

Ao percorrer a planície, além da riqueza natural, é possível encontrar, ainda na contemporaneidade, ruínas de saladeiros ou charqueadas, que compõem o ousado empreendimento econômico do Pantanal até meados do século XX, além de um patrimônio histórico e cultural, transmitido de pais para filhos, que mobiliza a memória e a identidade da população que vive ali.

O homem pantaneiro, figura que traz completude ao Pantanal, em que pese ser o maior interessado na preservação e no desenvolvimento sustentável da região, tem ocupado uma posição periférica na equação que envolve turismo, preservação do meio ambiente e lucro. A atividade turística no Pantanal não inclui os legítimos proprietários das terras. Eles não recebem royalties algum pelo uso de seu patrimônio particular, que grande parte das vezes é utilizado sem o expresso consentimentos dos donos.

Nascido e criado, há gerações, no local, o pantaneiro domina um complexo grau de conhecimento sobre a fauna, a flora, o clima e outros segredos da região. A despeito disso, a vocação turística do Pantanal Mato-Grossense toma outros rumos: grandes empresas exploradoras, aliadas a instituições e ONGs de cunho duvidoso exploram e poluem a terra e as águas que sustentam a atividade turística, como se elas fossem inesgotáveis.

Outra questão é que toda essa riqueza gerada pela implementação da atividade turística gera valores que não são revertidos em benefícios de quem vive na região e que é legitimo proprietário dela. Vide o caso do prejuízo causado pela desatenção ao Rio Taquari.

A população pantaneira precisa ser assistida, os investimentos na modalidade turística devem ocorrer de modo sistematizado, garantindo, sobretudo, a preservação do meio ambiente local, incluído, por óbvio, o povo pantaneiro. O financiamento deve ser para o proprietário da terra e não como ocorre hoje.

É preciso e justo que as riquezas geradas pelo pantanal sejam em benefício de quem vive e sustenta o bioma. Existem variedades turísticas mais apropriadas tais como turismo rural, ecoturismo ou turismo histórico e cultural que, ainda hoje, são irrisórios na planície pantaneira e assim, perpetuam uma inversão de valores e invasões das propriedades particulares que acarretam danos irremediáveis ao local.

Urge repensar o modo como se compreende o turismo nesse contexto. Quem deve receber os recursos? As ONGs ou o homem pantaneiro, que é legitimo proprietário do local? É possível e imprescindível integrar a população e trazê-la ao protagonismo de seu próprio cenário, por intermédio de atrações que ofereçam trilhas pelas matas, passeios com guias especializados, e locais, em fauna e flora, mirantes e postos de observação de aves e mamíferos, informações adequadas e atrações que comportem a cultura pantaneira.

O homem pantaneiro é cidadão, vive e se apresenta como protetor do Pantanal 

Naturalmente, na acepção mais literal do termo, não existe crise no Pantanal. A generosidade do bioma brinda a vida com fartura. Mas, intervenções mal planejadas e, muitas vezes, mal intencionadas, repercutem negativamente, instalando uma insegurança que jamais pairou na atmosfera local.

O homem pantaneiro encontra-se abandonado e refém em suas próprias terras e recebe, daqueles que frequentam o lugar, a fim de um turismo desordenado, o lixo que fica dessas visitas.

Se existem problemas estruturais que funcionam como empecilho ao desenvolvimento sustentável do homem pantaneiro e, por conseguinte, do Pantanal, deve valer uma reconstrução da organização do turismo de maneira que ela funcione como instrumento de afirmação da identidade regional, ao passo que fomente o reavivamento da história da gente pantaneira, além de recuperar o vasto patrimônio arquitetônico e arqueológico que se deteriora às margens do rio Paraguai.

O homem pantaneiro é cidadão, vive e se apresenta como protetor do Pantanal e transmissor de uma história limpa e fluida, como as águas daquele lugar devem permanecer. Não se pode pensar o Pantanal sem ele.